segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Querência

Eu queria ser como os poetas


que tiram liras da pedra

Ou como os homens práticos

Que tiram pedras da lira

Ou ainda como o vulgo

Que pisa sobre as pedras e as liras

E não sente, pois

Suas solas têm cascos



Mas, o que sou?

Nem poeta

Nem prático

Nem vulgo

Só tenho o sentimento do mundo

Embora não me chame Carlos nem Raimundo.

domingo, 12 de setembro de 2010

Monólogo a dois

- O que quiseste dizer com aquilo?

- Aquilo o quê?

- Aquilo que falaste.

- Quando?

- Vai dizer que não lembras?

- Eu falo tanta coisa.

- Mas aquilo foi absurdo!

- Aquilo o quê?

- Cara, tu és muito dissimulado mesmo. Não quero mais nem papo contigo. (vira-se para ir embora)

- Ei, espera aí!

- Que foi?

- Agora me conta. O que eu falei?

- Se não sabes, eu que vou saber?

- Acabaste de dizer.

- E não lembras mais?

- Não, acabaste de dizer que eu falei o que eu não sei.

- Não, tu sabias muito bem. Estavas sóbrio.

- Puta que pariu, é difícil conversar contigo, hein?

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Possível história de Pimenta Neves

Olhou no calendário e constatou: fazia três anos que não saía de casa, desde a morte da sua mulher, cujo principal suspeito era ele. Não podia conviver com os olhares inquisidores de todo mundo, certos de que ali estava um assassino repugnante, quando adentrava qualquer recinto ou caminhava nas ruas. Os comerciantes recusavam-se a atendê-lo, fechando as caras, e se insistisse poderia ouvir terríveis desaforos. As mulheres não correspondiam a seus olhares desejosos, fitavam-o com pavor, por isso incluíra em sua rotina uma ligação semanal para uma prostituta qualquer, sempre diferente. A maioria, indiferente aos noticiários, não reconhecia o psicopata que naquela época foi o grande filão sensacionalista, e que eventualmente reaparecia. Vivia dos rendimentos de uma poupança privada que, homem previdente, mantinha desde os vinte anos.

De casa acompanhava o mundo com pouco interesse. Via TV, acessava a internet, ouvia rádio, vez ou outra falava ao telefone, quando a mãe ligava, e se desfazia em lamentações que o deprimiam mais ainda. Decidiu não atender mais. A conta de email não era acessada há muito, talvez tivesse sido desativada. Apenas recebia informações, o que de alguma forma o distraía. Sentia-se como um morto insepulto, a quem tivessem negado o direito do descanso eterno. Restos de crenças antigas se acumulavam no seu espírito, impedindo "acabar logo com tudo", palavras que emergiam na consciência, e que se esforçava em empurrar para qualquer outro lugar da mente.

Acendeu mais um cigarro, recomeçou a fumar depois que "isso tudo" aconteceu. Abandonara o vício ainda jovem, esse e outros mais, mas o que pode fazer um semivelho confinado a uma casa escura e solitária?, perguntava irritado, como se algum intrometido o interpelasse. Fumava, esvaziava o bar que mantinha mais como um ícone burguês, masturbava-se compulsivamente e transava com mulheres perfeitas, autoesculpidas. Nos primeiros meses de reclusão tentara espiritualizar-se, com práticas meditativas e orações, mas acabou achando mais prático distrair-se através dos sentidos.

Três anos. Pálido, inexpressivo, naquele dia vestiu o velho paletó e foi à rua, esquecido de si mesmo.