terça-feira, 29 de setembro de 2009

O grande escritor

Tinham-no em conta de um grande escritor. Cinquenta anos de idade, desde muito cedo descobrira que se não escrevesse sua já frágil sanidade mental corria o risco de abandoná-lo definitivamente. Andava sempre com um bloco de papel, ou um pequeno caderno, e nele rabiscava suas impressões sobre o que via. Em grande parte, as anotações eram indecifráveis, seja pela caligrafia grotesca, deformada pelo tédio e pela ira, seja pela inegável originalidade das idéias. Tão originais que nem ele ali se reconhecia. Por esse motivo, não se incomodava se, de repente, alguém surpreendesse seus papéis e tentasse ler aquilo. Entre desenhos estranhos, como a lua que se curvava dando gargalhadas, e o homem composto de mãos, as palavras seguiam-se sem nada revelar.

Até que certo rapaz, magro, alto, e com um olhar enfadonho, lançou-o sobre aquelas frases. "Isso é literatura moderna!", disse. "Tu desvirtuaste a prosa, resgatando sua perdida função poética através do intra-diálogo", completou. O rapaz tinha bons conhecimentos em uma editora, e pediu ao homem que reunisse algo. Como fosse desempregado, e além disso se atraísse pela glória, gostou da idéia. Sem qualquer critério, remexeu os velhos cadernos, e separou uns tantos que já formassem um volume. Intitulou: "Blasfêmias". E entregou ao rapaz moderno.

Os editores, embora estranhassem aquele estilo, gostaram. Era uma obra fragmentária, segundo disseram. Em um mês, "Blasfêmias" estava nas livrarias de todo o país. Críticas em jornais, TV, convites para palestras em eventos diversos, logo o homem figurava no rol dos maiores intelectuais da nação. Alguns poucos olhavam-o com ceticismo, acusavam-o de oportunista, pseudo qualquer coisa. Só que ele já havia sido advertido que surgiriam tais reações, e sabia exatamente como se portar. Os jornalistas procuravam-o para saber o que tinha a dizer sobre a declaração do multiinstrumentista Fulano de Tal. Se fosse para televisão, inclinava a cabeça, sorria debochado e soltava coisas do tipo:

- Quero que esse cara se foda. Ele já era.

No dia seguinte, sua frase saía estampada nas revistas mensais e semanais, reverberava nos programas televisivos, ganhava os outdoors, e os admiradores do grande escritor só aumentavam. O multiinstrumentista, de ícone da cultura nacional, progressivamente tornava-se símbolo de nosso atraso. Ele, o poeta pós-concreto, a atriz cult e mais alguns ícones da cultura nacional, ao investir contra o laureado escritor, automaticamente eram relegados a símbolos de nosso atraso. Os demais logo perceberam essa regra, e, muito embora quisessem enxovalhar o polêmico escritor, disso se abstinham, em nome da própria sobrevivência. Em vez disso, eram orientados a enaltecê-lo. O dramaturgo de primeira, quando apareceu a oportunidade, asseverou:

- Vivemos uma renovação no cenário socio-artístico nacional, e ele é o símbolo disso.

E daí seguiam-se loas e mais loas ao cantado em verso e prosa escritor, e os anos foram passando, sem que alguém ousasse questionar o seu inquestionável valor. Casou-se trinta vezes com as mulheres mais desejadas da nação, e por diferentes razões. Enquanto isso, continuava a encher cadernos e mais cadernos com sua refinada literatura, no entanto, após "Blasfêmias" nada mais publicou. Também nada mais falou após repetir aquelas palavras para os cinco ex-ícones que ousaram enfrentá-lo. Aos cinquenta anos morreu de cirrose, e passados outros vinte começa a ganhar fôlego uma tendência acusando-o de ter sido uma grande farsa.

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